Primeiro que tudo, deixa-me dizer-te, sou da opinião que devemos seguir os bons exemplos (talvez ao contrário de ti que parece que me continuas a ler). Acompanho há alguns anos o trabalho de um individuo do Missouri, um apaixonado desde criança por baterias e cuja paixão se estendeu naturalmente aos VE. Acompanhar é seguir as suas conversões de veículos, projetos em torno do tema, experiências e testes, bem-sucedidos ou nem por isso às vezes. São vídeos outrora semanais (agora com uma periodicidade mais alargada), com mais de 2h de duração de conversa didática em torno do tema que te faz ler estas linhas também. Jack Rickard é bastante conhecedor do que fala, não esconde o que faz, como faz nem o que usa nas suas conversões de automóveis e até de barcos. Um verdadeiro ‘open-source man’. São milhares de milhas conduzidas aos comandos dos seus carros, feitos e convertidos por ele. Pareceu-me um bom exemplo a seguir, como dizia, e então tomei atenção às baterias utilizadas nas suas conversões.
Se quiseres também tu conhecer o trabalho do Jack, espreita o site www.evtv.me. Se entretanto leste o documento que partilhei via link no post anterior, então já conheces alguma coisa. “Thanks Jack!”. O Jack utiliza células LiFePO4 (também designadas por LFP), ou seja, células com uma composição de lítio ferroso no cátodo (elétrodo a partir do qual a energia sai da bateria). A densidade energética destas células não é a melhor, especialmente quando comparada com outras células mas possui no meu entender, 3 enormes vantagens: voltage sag ou seja a queda de tensão perante a disponibilidade energética é muito reduzida; durabilidade – maior número de ciclos de carga/descarga face a outras químicas; segurança – talvez a caraterística que mais valorizo numa bateria. Estas células, quando submetidas a esforço respondem de uma forma muito linear, entregando a energia solicitada com uma tensão muito contante – em torno dos 3,2V. Apenas no limite da sua capacidade é que a tensão decai em utilização. Este aspeto é muito importante para o funcionamento e desempenho do próprio motor, pois assegura uma potência constante. Outras células, com outras químicas, não respondem tão bem ao pedido de energia.
Nos seguintes gráficos, podemos comparar duas gerações de baterias LiFePO, relativamente a diversos níveis de descarga. No caso das SE60 (as amarelinhas), estamos a falar da geração mais antiga. As CA60 do gráfico são as cinzentas, iguais às que adquiri para utilizar na Morcega. Em ambos os gráficos, é possível verificar que a tensão permanece em patamares muito estáveis até ao momento em que a célula fica com níveis de energia muito baixos. É possível verificar também que a nova geração trouxe melhorias face à geração anterior, estabilizando ainda mais a tensão à medida que a célula é descarregada. As melhorias estendem-se também ao comportamento das células quando submetidas a temperaturas de funcionamento mais baixas. Poderás consultar outros gráficos comparativos em http://evtv.me/2012/06/battery-jump-shift/. Thank again, Jack!
No que diz respeito à segurança, estas células são bastante seguras devido às propriedades dos materiais utilizados. Células com densidades energéticas superiores como as LiCoO2 (Lithium Cobalt Oxide) ou LiMnO (Lithium Manganese Oxide) são mais instáveis e menos tolerantes na sua utilização. Veja-se, por exemplo, o comparativo entre LiCoO2 e LiFePO4 em https://www.ev-power.eu/docs/web/2014/GWL-Support-LiFePO4-LiCoO2-Comparison.pdf. Não, este não é do Jack…
Ao contrário das baterias de chumbo dos nossos automóveis, as baterias de lítio não podem ser sobrecarregadas (overcharge). Esta sobrecarga das células Li, não só as destrói como pode trazer graves consequências, provocando sobreaquecimento e degenerando muitas vezes em fogo e… não se pense que se combate um fogo de uma bateria como quem apaga uma braseira em casa atirando-lhe um copo de água para cima. É nesta matéria que sobressai a segurança das LFP, pois sendo mais tolerantes a abusos, o seu ponto de combustão é significativamente mais tardio.
Da mesma forma, embora com consequências diferentes, as células de uma bateria não devem ser totalmente descarregadas (undercharge), sob pena de estas se danificarem irremediavelmente. Baseando-se nos pressupostos de as células de uma bateria não poderem ser sobrecarregadas nem totalmente descarregadas, os fabricantes desenvolveram mecanismos de monitorização e proteção das células, uns passivos (dispositivos apenas para monitorização) e outros dispositivos a funcionar como controladores e atuadores. Falando agora destes últimos e sem querer entrar em polémicas, uma vez que este tema é controverso q.b., posso dizer-vos que estes tipo de dispositivo intrusivo foi o responsável pela ruina de 50% do pack da primeira geração da Morcega. Para perceberem melhor a que me refiro, tenho de vos explicar uma coisa primeiro…
Como já devem ter percebido, chamamos bateria (seja Li ou Pb) a um conjunto de células ligadas entre si (sim, uma bateria Pb de automóvel também é um conjunto de células). Juntas, formam a tensão e a capacidade com que se anuncia hoje as caraterísticas de uma bateria. Dependendo da sua composição, as células Li normalmente variam em tensão entre os 3,2v e os 4,2v nominais. Quando temos uma bateria carregada, subentende-se que todas as suas células estão à mesma tensão e que todas têm também a mesma quantidade de energia. Isto pode não ser totalmente verdade por variados motivos. Um dos quais pode ser a auto descarga de cada uma das células. Apesar das células Li serem conhecidas por não terem praticamente auto descarga, a mesma pode sempre ocorrer em maior ou menor escala, consoante o estado da própria célula. Outro fator tem a ver com algum consumo parasita que possa estar a ocorrer nas células, especialmente se a elas tivermos ligados os sistemas de atuação ou monitorização acima referidos. Outro aspeto ainda tem a ver com a própria célula pois, mesmo produzidas em série, nada garante que a célula acabada agora de sair do forno tem e-x-a-t-a-m-e-n-t-e a mesma capacidade e o mesmo comportamento relativamente à célula que acabou de sair anteriormente e está só ali a arrefecer um pouco.
Toda esta lengalenga para dizer que perante um pack carregado, composto por diversas células, podemos observar ‘ao microscópio’ que há umas células que estão no limite da sua capacidade e outras muito próximas dele, como se umas estivessem a 100% e outras a 99% e outras a 99,5%… e o carregamento terminou porque o carregador estava programado para desligar, vamos supor, aos 80V. É aqui que os tais circuitos atuadores intervêm, provocando danos irreversíveis e muitas vezes catastróficos. Como nem todas as células atingiram os 100% durante o período de carregamento, estes atuadores ‘seguram’, dissipando energia em forma de calor, as células totalmente carregadas, esperando que as restantes cheguem ao mesmo valor. Isto vai gerar energia térmica e provocar stress nas células. No fundo, está-se a pedir às mais fracas (as tais que têm aquela diferença de capacidade mínima mas que na verdade não deixam de ser mais ‘curtas’) que cheguem onde chegam as maiores do pack. Estamos perante os chamados BMS (Battery Management System).
Deixem-me também explicar porque os BMS tentam fazer aquilo para que foram construídos. Como disse, uma bateria é um conjunto de células, certo? Para funcionar como um pack, todas as células devem reagir da mesmíssima forma, quer na carga quer na descarga, ou seja, quando se carrega todas devem ter a mesma capacidade no fim do carregamento e quando se descarrega, todas devem descarregar de igual forma. Se isto não acontecer, pegando novamente na lupa, veremos diferenças de célula para célula. Pois bem, o BMS tenta garantir que num pack carregado todas as células estão iguais e prontas para descarregar, como se tivéssemos sempre uma régua de nível a garantir que nenhuma estaria acima das restantes.
Eu também disse que as células não devem ser totalmente descarregadas, lembram-se? Agora imaginem um pack desbalanceado (umas células com mais energia que outras) em utilização de descarga e a chegar ao seu limite. Nestas circunstâncias, pode-se dar o caso de já termos uma célula completamente vazia e outras ainda com alguma energia para fazer o motor funcionar. Se insistirmos na descarga, a célula que nesse momento tiver menor energia será a próxima a ‘ir à vida’ e assim sucessivamente, enquanto ainda restar a tensão necessária e a energia para o motor continuar a funcionar. Um BMS tenta também gerir esta situação, não deixando as células esgotarem. Portanto, se tivermos um mau BMS ou simplesmente um BMS que falhe, conseguem agora perceber as consequências? Então conseguem olhar para a seguinte imagem e entender que a ‘teia de fios’ que ali aparece não é mais do que o resultado de células LFP que foram sobrecarregadas e libertaram os eletrólitos. Esta fotografia foi tirada por mim, aquando da avaria do BMS da Morcega na sua geração anterior. Felizmente, a segurança destas células impediu que as mesmas ardessem quando incharam e vaporizaram, libertando o eletrólito. A imagem não consegue traduzir o cheiro, mas deixem-me dizer que é uma espécie de cheiro de diluente muito mais forte.
Uma das caraterísticas dos controladores – ver “O cérebro de tudo isto” – é configurar um ‘neurónio’ para fazer shutdown quando a tensão atingida for crítica. Este corte funciona assim como limite e proteção última da bateria. Alguns controladores permitem ainda a definição de um outro parâmetro de tensão, parâmetro esse que funciona como “reserva”, ao colocar o controlador em modo gestão quando determinado valor de tensão da bateria é atingido. Em vez de um corte, o controlador reduz a corrente máxima que extrai da bateria mas permite que o sistema continue a operar.
Assim, dispenso o uso de BMS na minha conversão, e a Morcega agradece. Com as LFP que instalei, beneficio das características que tenho vindo aqui a descrever. Previno o overcharge confiando ao carregador essa função e previno o overdischarge confiando no controlador. Quanto ao ‘nivelamento’ das células do pack, tenho agora a Morcega na garagem para uma primeira revisão (e instalação de alguns upgrades/melhorias), ao fim de mais de 4 mil quilómetros sem problemas. Nesse momento, verificarei a tensão de cada célula para perceber se tenho o pack desbalanceado ou não mas… aposto que não. “O que me deixa assim tão confiante?” Bom, lembram-se como começou este post? “(…) sou da opinião que devemos seguir os bons exemplos”, então, a resposta está na ‘receita’ que vos vou passar na terceira e última parte desta trilogia sobre baterias e na experiência provada do meu amigo Jack.
“…mas ainda vamos continuar a falar de baterias?” Parece que sim, pelo menos prometi que iria ser uma trilogia e não quero dececionar ninguém por isso, até breve Amigos!
Sim, estive de férias e vocês… deixaram-me um legado grande para acompanhar 🙂
Assim, cá estou de volta para dizer que sim, que concordo com o que dizes sobre as células e permite-me apenas acrescentar o seguinte, um simples pormenor histórico.
Até surgirem as LiFePo, todas as químicas anteriores de baterias tinham auto-descarga, como tal, quando estas surgiram e os fabricantes (principalmente os chineses) nas folhas de especificações estandardizadas colocavam zero na auto-descarga surgiu uma enorme desconfiança por parte do mercado.
E eles começaram a colocar um valor mínimo para combater essa desconfiança.
Assim se propagou um mito sobre esta química.
Também historicamente as folhas de especificações pediam carregamentos até aos 4,2V e se fores ver agora quase todos falam em 3,6V/3,8V ou algo por aí perto.
É que a energia que a célula leva acima disso é tão “residual” que não vai fazer diferença na autonomia, mas pode fazer uma enorme diferença na longevidade da célula dado nessas voltagens mais altas estarmos a meter a célula em stress.
Aguarda-se mais desenvolvimentos!
Muito bem mon ami. Vejo que andaste a estudar bem o assunto :). Essas CA são de facto uma melhoria significativa face às anteriores. A questão do “voltage sag” é importante, no sentido em que se tira mais rendimento “do mesmo”. Se fosse hoje teria provavelmente ido para aí, mas agora tenho que me “aguentar” com as Winston, que suponho terem performance similar às SE da Sky Energy. É difícil testar baterias destas capacidades, e já nem falo de características como tempo de vida.
Cá aguardamos a 3ª parte 🙂
p.s. Que cabeleira tão bonita 🙂
Ao que julgo saber, não haverá muita diferença entre as células Winston e as Sky Energy, ambas de geração anterior às CALB. Já entre estas e as CALB, parece existirem algumas melhorias nestas últimas, nomeadamente as melhorias que evidenciei no texto. Aqui só vejo um senão, uma curva de descarga tão ‘flat’ dificulta a perceção do SOC da bateria tendo como instrumentação o simples voltímetro, daí achar fundamental o recurso a medidores de amperes e à famosa técnica de Columbus Counting que explicarei atempadamente mas a vantagem de uma resposta tão linear ao pedido de energia é largamente compensadora.
E quanto à “cabeleira”, posso dizer que foi após ver células a 0V (zero!) e outras a 5,6V no mesmo pack (há registo vídeo para os mais céticos), portanto, as células têm mesmo de ser boas para só terem inchado e deixado crescer a gadelha.