Em 2009 iniciei a ambição de reinventar o transporte pessoal, motivado por uma possível colaboração com um cidadão Norte-Americano chamado John Bass que estava a desenvolver motores-roda de alto rendimento. Depois de estudar as várias formas de transporte ligeiro, cheguei à conclusão que a melhor forma de transporte para o habitante da cidade seria um veículo muito ligeiro e compactável, algo que se pudesse arrumar debaixo de uma mesa e transportar facilmente num comboio ou avião ou elevador.
Assim, o transporte seria verdadeiramente pessoal: o veículo seria “de bolso”, permitindo ao condutor deslocar-se nas distâncias intra-citadinas (e arredores) com conforto e, se necessário, fazer-se acompanhar do condutor a bordo de um transporte colectivo eficiente como o comboio ou o avião até outra cidade. Chegados ao destino, é desdobrar e andar. Seria o transporte intermodal perfeito. Ainda não há consenso sobre o número de lugares, mas o ideal seria um lugar e meio, ou seja, um lugar de adulto e outro para uma criança ou saco de compras / mochila / etc. O veículo deveria também proteger das intempéries e isso exige uma cobertura dobrável bem integrada com a plataforma de tracção.
A colaboração acabou por não dar frutos, mas ambos os projectos seguiram em frente. Fui apresentando o meu a “criadores” Portugueses de outras áreas técnicas, e a pouco e pouco e de forma espontânea foi aparecendo uma equipa de desenvolvimento colaborativo com grandes sonhos para este pequeno veículo. Já não era só uma plataforma de tracção revolucionária, e com a colaboração dos outros reconheci que há uma quantidade mínima de requisitos de segurança a cumprir: o veículo deve ser robusto em caso de acidente com veículos mais pesados; isto obriga a repensar o design do veículo e da cobertura, que devem estar 100% integrados. O desafio da leveza e compactação versus a robustez é cada vez mais difícil de resolver, mas é para isso que cá estamos. 😉
Uma das estratégias para se poder cumprir este caderno de requisitos contraditório e ambicioso passa por eliminar tudo aquilo que não é estritamente necessário em termos mecânicos. Ao eliminar a transmissão, a direcção, e em grande parte a suspensão e travões mecânicos, o design fica muito mais leve e simples e com volume livre para acrescentar complexidade em outras frentes, como na dobragem e capota.
O sistema eléctrico escolhido para este projecto é a transmissão híbrida humana/eléctrica série. Esta é composta por um gerador a pedais, que por sua vez alimenta uma bateria e os motores. A potência principal para accionar os motores pode vir apenas da bateria ou dos pedais, ou em qualquer outra combinação dos dois conforme desejado. O mais provável é que seja necessário utilizar o carregamento a partir de fontes externas, mas a leveza do veículo deverá permitir o accionamento directo a partir dos pedais, com mais ou menos suplementação a partir da bateria para vencer obstáculos e aumentar o conforto e alcance. Esta engenharia integrada visa garantir que o alcance do veículo seja tão grande como a soma da energia da bateria com a energia do condutor, mas sem penalizar o esforço do condutor. Idealmente o sistema híbrido permitiria uma autonomia infinita e confortável.
É conhecido que um sistema híbrido série tem uma eficiência total inferior a um sistema mecânico simples; por isso seria um desperdício de força obrigar o condutor a pedalar o veículo em frente sem qualquer ajuda do sistema: as perdas nos conversores electrónicos de potência e nos motores são maiores do que as perdas mecânicas de uma corrente ou correia, mesmo com mudanças. Uma transmissão mecânica facilmente se coloca acima dos 90% de eficiência, enquanto uma transmissão eléctrica série facilmente cai abaixo dos 80%. É claro que há aqui uma dependência grande da qualidade dos materiais e design, mas a tendência geral é esta.
No entanto, um sistema híbrido permite facilmente fazer coisas que com o sistema mecânico seria muito complicado e dispendioso fazer; a principal vantagem da tracção puramente eléctrica é poder implementar todas aquelas características sofisticadas que os automóveis hoje têm (ABS, ASR, ESP, etc.) alterando apenas o software que corre nos controladores, sem necessidade de mexer na mecânica ou electrotécnica do veículo. Outra vantagem é o desacoplamento total entre as pernas do condutor e as rodas na estrada, o que abre um mundo inteiro de possibilidades em termos de gestão de esforço do pedalador; as subidas não têm de custar mais do que um trecho horizontal, é tudo uma questão de gestão digital da energia armazenada. E há também, claro, a flexibilidade de implementar os “modos” que nos apetecer: o modo “super-homem” em que o veículo tem 5x a potência que pedalarmos, o modo “exercício” em que temos de pedalar uma força constante independentemente da situação do veículo, o modo “esperto” em que só se pedala até um certo limite de conforto e o veículo fornece a potência necessária para vencer obstáculos, o modo “eléctrico” em que não é necessária qualquer força, etc. O limite é a imaginação.
Juntando a isto a travagem e descida regenerativa e a possibilidade de “roubar” uma pequena quantidade de força às pernas do condutor para recarregar lentamente as baterias, temos um veículo com um enorme potencial de alcance eléctrico ilimitado. Porque no fundo é mais importante para quem pedala manter o esforço controlado dentro de uma gama de conforto apertada, do que minimizar esse esforço a todos os instantes sem qualquer garantia no futuro.
O controlo da direcção do veículo é conseguido através da gestão diferencial das velocidades das duas rodas motrizes, tal como numa cadeira de rodas eléctrica. Isto simplifica enormemente a estrutura do veículo, pois não é necessário implementar um sistema de direcção mecânico. As rodas motrizes estão fixas à estrutura em posição paralela, e é tudo. A viragem é feita como num tanque de guerra ou escavadora de lagartas, mas com rodas. Existe uma terceira roda (e talvez uma quarta) que tem de ter direcção livre, para que as outras duas possam definir completamente a direcção do veículo. Este veículo deseja-se de baixa velocidade para manter simples a sua mecânica sem comprometer a estabilidade em estrada. A aplicação directa de motores eléctricos nas rodas motrizes permite também compensar na origem pequenas instabilidades que possam degenerar em grandes instabilidades, evitando derrapagens em aceleração, curva, e travagem, utilizando apenas software e conversores de potência eléctrica.
E assim nasceu a DiffTrike.
Ao longo dos dois anos seguintes várias pessoas foram contribuindo para o projecto, sempre com base na abertura e aprendizagem típicas de um projecto “open source”. O Software desenvolvido para o controlo da trike está publicado em repositório livre com licença GPLv3, e os designs mecânicos e estéticos também serão publicados com licença Creative Commons. A intenção é estimular a criatividade e entreajuda nacional e internacional numa área que está a precisar de sangue novo.
Lista de contribuidores para o projecto:
- Controlo Digital: Vasco Névoa
- Controlo de Potência: Nuno João
- Design Estético: Manuel Santos
- Design Mecânico: Manuel Santos
- Engenharia Mecânica: Rodrigo Melo
- Mentor: Vasco Névoa